"Tornou a ira do SENHOR a acender-se contra os israelitas, e ele incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá" (IISm 24.1).
"Então, Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo de Israel" (ICr 21.1).
No texto de Samuel vemos que “O SENHOR se enfureceu outra vez contra Israel e incitou Davi contra eles, dizendo: Vai, faze a contagem de Israel e Judá”. No texto de Crônicas lemos: “Então Satanás se levantou contra Israel e incitou Davi a fazer a contagem de Israel”.
Logo de início temos de lembrar, quando da interpretação de qualquer texto bíblico, que como crentes cremos que a Bíblia é a Palavra de Deus em sua totalidade , portanto, inerrante e infalível. Esse é o pressuposto de fé que deve nortear todo e qualquer estudo da Bíblia a que nos propusermos. Sendo assim, de antemão temos de crer que os dois textos dizem a verdade: tanto Deus quanto Satanás estiveram, de alguma forma, envolvidos no censo pecaminoso de Davi. Posto isso, descobrir qual o envolvimento de cada um é o nosso trabalho aqui.
Tendo em vista que os textos são vetero-testamentários e, portanto, seus originais escritos em hebraico antigo, para interpretar esses dois versículos temos, nesse caso, de lançar mão da linguística. Os dois textos apresentam um idiotismo hebraico. O pastor Russell Shedd diz que “as duas expressões... correspondem à frase: ‘Davi foi tentado’” . Os dois textos são formas diferentes de expressar a mesma verdade, de uma forma que é comum ao hebraico, mas não comum à nossa língua portuguesa. O autor de Crônicas é direto afirmando que Satanás foi quem incitou Davi ao pecado, enquanto o autor de Samuel, por causa da causalidade divina comum à sua época, atribui essa ação ao Senhor.
Podemos também comparar esses dois textos com outros onde tanto Deus quanto Satanás agem simultaneamente. No caso de Jó, Satanás é o agente direto do mal que lhe sobreveio, mas toda sua maldade não foi levada a cabo sem a permissão expressa Daquele que se assenta no trono da majestade celestial e detém o cetro da soberania sobre todas as coisas: o Senhor Deus Altíssimo. No entanto, mesmo sendo Satanás o causador do mal, Jó não percebe dessa maneira. Quando ele perde todos os seus bens e seus filhos ele diz: “... Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1.21). Ele não disse: “o Senhor o deu e Satanás o tomou”. Quando Deus permite que Satanás tocasse sua saúde e Jó fica gravemente enfermo ele diz à sua esposa: “... temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?” (Jó 2.10). Até o servo de Jó, ao dar a notícia trágica diz: “... Fogo de Deus caiu do céu, e queimou as ovelhas e os servos, e os consumiu” (Jó 1.16). Satanás matou os servos e as ovelhas, mas ele diz que o fogo era de Deus. Mesmo assim, a Bíblia afirma que Jó não pecou em dizer essas coisas: “Em tudo isso Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma” (Jó 1.22). Jó não pecou porque entendia que Deus, sendo o verdadeiro dono de tudo o que ele possuía tinha o direito de usar e reclamar para si tudo o que quisesse, quando quisesse, da forma que quisesse. E Jó fez isso sem atribuir a Deus a maldade pelos atos que lhe sucederam. No caso de Jó, Satanás agiu por maldade e ira, objetivando a destruição e a vergonha de Jó. Deus permitiu a ação de Satanás por saber que Sua glória é maior e mais valiosa do que toda a Terra e por saber que o sofrimento de Jó redundaria na firmeza de seu caráter e no aprofundamento de seu relacionamento com Ele mesmo. Jó mesmo registra isso no fim do livro: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem” (Jó 42.5). Bom para nós aprender que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, que são chamados segundo o Seu propósito. Na nossa fragilidade e pequenez humana não percebemos que se um período de sofrimento, sob a orientação de Deus, culminar no estreitamento do meu relacionamento com Ele, valerá a pena! Afinal, não é isso que aqueles que amam a Deus buscam? Se relacionar cada vez mais intimamente com Aquele que fez os céus e a Terra?
Na crucificação de Jesus também vemos a ação de Satanás e de Deus Pai. O propósito de Satanás era destruir o Filho de Deus (Jo 13.2; ICo 2.8). O objetivo de Deus foi redimir a humanidade pela morte de seu Filho (At 2.14-39).
Mas, e no caso de Davi? O pecado de Davi não foi o censo em si, mas a confiança nos números tomando o lugar da confiança em Deus. Provavelmente, Deus permitiu que Satanás tentasse Davi a promover o censo, o que realmente ocorreu; não sem um último alerta de Deus pela boca do general Joabe (IISm 24.3). Assim, o autor de Samuel diz que o Senhor incitou Davi, pois foi Ele quem permitiu a tentação. O autor de Crônicas diz que foi Satanás quem incitou Davi, pois ele é o tentador por natureza, e nós que dispomos da revelação completa do Novo Testamento, sabemos que Deus a ninguém tenta (Tg 1.13). Portanto, os dois textos expõe o mesmo fato lembrando duas verdades: Satanás é o tentador por natureza e Deus é o soberano por natureza. Paulo afirma categoricamente que ninguém será tentado além do que é capaz de resistir (ICo 10.13) provando que Deus não tenta ninguém, mas tem o controle sobre todas as tentações que Satanás em sua ira intenta contra a humanidade. Não estamos órfãos, Ele nos guarda e nos livra, mas também nos prova, e essa provação pode ser executada pelo tentador.
Cometemos o mesmo pecado de Davi muitas vezes. É comum ver “pastores” que medem a ação de Deus pelo número de membros de sua igreja ou pelo valor das entradas financeiras. Crentes que confiam no número de boas obras que fazem e não na graça do Senhor que lhes dá o privilégio de servirem. Pregadores que medem a “unção” da sua mensagem pelo número de parabéns que recebe quando desce do púlpito ou pelo número de pessoas que foram à frente no apelo. Cristão que anestesiam sua própria consciência que os acusa aumentando o valor das suas ofertas ou o número de horas que passa na igreja ou o número de cultos que frequenta. Os números são importantes e podem servir para nos alertar sobre algum problema, mas a matemática é serva de Deus e não Deus servo da matemática! Deus é quem detém todo o poder! Ele é soberano! Ele pode todas as coisas! É Ele quem opera tudo em todos (ICo 12.6).
Além disso, os textos estudados nos ensinam outras lições sobre a responsabilidade da liderança e a abrangência da sua influencia, tanto para o bem como para o mal. A vastidão das consequências do pecado na liderança e lições preciosas sobre o senso de justiça de Deus.
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