Não
bastasse, ao longo da história da Bíblia Eclesiastes tem embasbacado os
leitores da Bíblia deixando-os encucados com o tom ácido e pessimista do autor
que parece estar deprimido e com a tentativa frustrante de conciliar o tom do
livro com aquilo que, subjetiva e quase sempre inconscientemente, a cultura
ocidental resolveu eleger como “personalidade de Deus”. Como pode um Deus tão
bom, amoroso e otimista admitir um livro tão cético e fatalista no miolo da Sua
Palavra??? Ah! Este livro deve estar sobrando ali... Algum chato, desiludido da
vida e atrevido deve ter incluído este livro nos livros sagrados para zombar,
ou talvez ironizar, a esperança daqueles que se esforçam para crer que a vida
pode ser melhor neste mundo.
Quando
isto chega ao pensamento tentamos buscar sentido pensando: a Bíblia não deveria
mostrar mais coerência? Não deveria haver algum tipo de tom que fizesse a
amarração entre todos os livros da Bíblia, de forma que eles se encaixassem com
mais facilidade e não nos provocasse tanto???
A
verdade é que o livro de Eclesiastes é, junto com Cantares de Salomão, um dos
livros mais mal compreendidos da Bíblia (e perceba a ironia aqui, Eclesiastes é
a amargura; Cantares a doçura). Um é ignorado muitas vezes por parecer não se
harmonizar com a doçura de Deus; o outro é ignorado por parecer não se
harmonizar com a espiritualidade sisuda de Deus.
Devemos,
todavia, nos atentar para alguns fatores que nos ajudarão a entender o por quê
desta incompreensão que provoca o desgosto dos leitores por Eclesiastes.
1)
Eclesiastes
é um livro poético
Literariamente
Eclesiastes é um drama poético. É por isso que as nossas Bíblias o colocam
junto com os outros livros poéticos, como Jó (literariamente uma tragédia);
Salmos (literariamente poemas e cânticos); Provérbios (literariamente e
literalmente um compêndio de provérbios e axiomas de sabedoria) e Cantares de
Salomão (literariamente um poema romântico).
Estes livros,
por causa do seu estilo literário, não devem ser lidos e interpretados do mesmo
modo que os demais textos da Escritura. Dificilmente conseguiríamos chegar ao
verdadeiro sentido de um texto poético, pretendido pelo autor, aplicando sobre
ele as mesmas formas de interpretação que usaríamos num livro profético, como
Jeremias, ou num livro de narrativa histórica, como Juízes, ou ainda numa
biografia narrativa, como Lucas.
Uma
das mais marcantes peculiaridades dos livros poéticos é que enquanto os demais
livros da Bíblia são claramente reconhecidos como Deus apresentando-se ao
homem, os poéticos são notadamente o homem escancarando o seu coração e mente
diante de Deus. É provável que esta seja uma das maiores razões pelas quais o
livro de Salmos seja o preferido de muitos, por causa da identificação que o
leitor encontra com o autor quando percebe que este exprime exatamente os
mesmos sentimentos, crises, angústias e temores que ele na sua vida comum dia
após dia. O autor mostra-se desnudo nos poéticos, não há firulas ou engodos. Se
há um lugar da Bíblia em que qualquer ser humano poderia apontar o dedo e
dizer: este sou eu, este lugar é nos livros poéticos. Nos poéticos vemos homens
de Deus com medo, com uma fé trêmula, perplexos diante das incoerências que a
vida num mundo caído apresenta em cada esquina. Num capítulo os vemos cheios de
esperança e certeza, no próximo suplicando o socorro de Deus diante da sua
fraqueza e inconstância. Simplesmente não dá para interpretar este tipo de
texto como se interpreta a exposição de um tratado teológico sobre a doutrina
do pecado como os primeiros capítulos da epístola de Paulo aos Romanos.
Ao
ler os poéticos, temos de ter em mente que estamos lendo um livro, inspirado
por Deus, mas que reflete o coração do homem diante das circunstâncias da vida.
Por isso, um conhecimento razoável das técnicas de hermenêutica é uma
ferramenta formidável para a interpretação dos textos canônicos.
Como vimos os
autores dos livros poéticos não tinham a intenção de escrever teologia ou de
registrar narrativas históricas, mas a de virar do avesso o coração humano.
Eles pretendiam fazer de seus escritos um espelho pelo qual os homens se
reconhecessem e pudessem então chegar às mesmas conclusões.
2)
A
revelação de Deus no Antigo Testamento foi Progressiva
Outra coisa
que quando desconsiderada produz muita confusão nos leitores dos livros
poéticos (e do Antigo Testamento em geral) é a revelação progressiva de Deus.
Isto significa que, após o pecado e o afastamento entre o homem e Deus, o
relacionamento quebrado precisava ser restaurado por meio de Cristo. Todavia,
Deus resolveu ir se revelando a este homem pecador de forma paulatina para que
sua mente maculada pelo pecado pudesse compreende-Lo com propriedade. Desse
modo, Deus veio revelando a Si mesmo e Suas verdades ao homem através dos Seus
servos ao longo da história do povo que Ele elegeu para esta honrosa tarefa,
Israel. Esta revelação alcançaria seu ápice na encarnação do próprio Filho de
Deus, Cristo, e seria registrada em Escritura pelos Seus servos, os apóstolos e
discípulos no Novo Testamento. Até que Cristo viesse, na plenitude dos tempos
(Gl 4.4), Deus preparou a nação de Israel e, por extensão, a humanidade, com o
Antigo Testamento, que é a sombra das coisas que viriam com Cristo (Cl 2.17; Hb
10.1).
Todo o Antigo
Testamento, então, é Palavra de Deus e útil para nos ensinar com a experiência
nele registrada e para possibilitar a interpretação correta do Novo Testamento
que é a coroação e conclusão de toda a preparação feita pelo Antigo Testamento.
Todavia, enquanto os livros do Antigo Testamento vinham sendo escritos, o
entendimento dos autores a respeito dos assuntos espirituais ainda não era
completo, pois ainda não havia sido revelada toda a verdade de Deus em Cristo
no Novo Testamento. Assim, precisamos compreender que Deus comunicou progressivamente, no curso dos séculos,
as verdades necessárias à salvação e à compreensão dos assuntos espirituais até
que o Novo Testamento estivesse completamente registrado.
3)
Princípios
eternos, forma estética e conceitos incompletos
Entendemos,
então, que os princípios eternos de Deus revelados no Antigo Testamento devem
ser aceitos, cridos e vividos pelos crentes da nova aliança feita em Cristo. O
erro, entretanto, seria confundir um princípio eterno de Deus revelado no
Antigo Testamento com outras duas coisas: a formatação prática (forma estética)
com que o princípio foi revelado e/ou expressões da compreensão limitada de uma
doutrina ainda não revelada em sua plenitude. E é aqui que o livro de
Eclesiastes sofre tanto!
Princípio
eterno é a verdade que o texto ensina e que impera livre das limitações de
tempo e espaço, ou seja, que vale para qualquer pessoa, em qualquer lugar, em
qualquer tempo, em qualquer cultura. Os textos do Antigo Testamento obviamente
carregam princípios eternos de Deus, daí sua importância.
A forma
estética é a maneira, dentro do tempo/espaço/cultura, onde os princípios
eternos de Deus foram aplicados. Um exemplo de fácil compreensão destas duas
coisas é o sacrifício de animais instituído na lei do Antigo Testamento. O princípio
eterno é que não há remissão de pecado sem sangue (Hb 9.22, conferir IPe 1.19).
A forma de aplicar este princípio, na antiga aliança, usando um animal como
substituo simbólico do pecador, foi abolida quando Cristo morreu na cruz. O
princípio permanece: sem sangue derramado não pode haver remissão de pecado,
portanto, a forma mudou, pois Cristo é o cordeiro perfeito oferecido uma vez
por todas (Hb 7.27), mas o princípio sempre será vigente. Se confundirmos as
duas coisas, teremos de sacrificar animais ainda hoje.
Expressões
da compreensão limitada de uma doutrina no Antigo Testamento também podem ser
vistos em razão da revelação progressiva de Deus. Elas não ferem ou maculam o
princípio eterno expresso nas passagens, mas podem dificultar o trabalho de
interpretação se o leitor não dispensar um cuidado razoável no seu labor
interpretativo.
4)
A
importância de conhecer o propósito do autor ao escrever o livro
O propósito de
Eclesiastes é questionar “que proveito
tem o homem de todo o seu trabalho com que se afadiga debaixo do sol?”
(1.3). Ele questiona as respostas comumente dadas à indagação, indicando suas
experiências em tais aproveitamentos da vida terrena.
O
objetivo do escritor foi demonstrar, científica e filosoficamente, a futilidade
da vida sem Deus e mostrar a satisfação e a alegria de viver na percepção da
soberania divina. O livro é uma exposição dramática das arrogantes
reivindicações do naturalismo e do hedonismo.
O
tema geral de Eclesiastes pode ser descrito como a futilidade de procurar
significado da vida sem Deus, uma perspectiva negativista, tendo a felicidade
da vida com Deus como tema corolário numa perspectiva positivista. Enfim, o
tema geral é a verdade de que a eterna busca do homem pela tão almejada felicidade e o sentido da vida não pode ser satisfeita sem que se tema a Deus e
guarde os seus mandamentos, pois a iniciativa de viver a vida na terra alheia
aos conselhos do Senhor, por qualquer meio ou entendimento possível, termina em
frustração e desespero. Se o autor revela o problema que procura resolver ao
longo do livro logo na abertura (1.3), ele não deixa de registrar o resultado
da sua pesquisa no fechamento do trabalho (12.13-14).
Entendendo o verso Ec
9.10
O
verso na ARA está traduzido: “Tudo quanto
te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque no além, para onde tu vais, não há
obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma”. A ARC traduz:
“Tudo quanto te vier à mão para fazer,
faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura,
para onde tu vais, não há obra, nem indústria, nem ciência, nem sabedoria
alguma”. Ainda, a NTLH traz: “Tudo o
que você tiver de fazer faça o melhor que puder, pois no mundo dos mortos não se faz nada, e ali não existe
pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E é para lá que você vai”
(Grifos meus).
Os
termos grifados nas versões acima referem-se ao termo hebraico usado pelo autor
de Eclesiastes, Sheol, termo que
encontrou, na tradução da Septuaginta[1],
o conceito correlato na língua grega com a palavra hades.
Dizer
Sheol não é pronunciar uma única
ideia, mas sim colocar um rótulo em uma doutrina progressiva que avançou de um
estágio a outro. Originalmente significava apenas “túmulo” e não continha
nenhuma alusão ao pensamento de pós-vida de qualquer tipo, boa ou ruim. Nos
Salmos e nos profetas a esperança da imortalidade começa a entrar no pensamento
hebraico. O Novo Testamento adicionou dimensões significativamente maiores à
essa doutrina.
Da
ideia primitiva de “túmulo” a doutrina se desenvolveu até ao ponto da concepção
de as almas seguirem para o Sheol e
ali permanecerem, mas ainda sem distinção entre bons e maus como, por exemplo,
Lc 16.19ss ensinaria séculos adiante; cf. Jó 10.21-22; 26.5; Sl 16.10; 88.10;
139.8. Não são referências abundantes, mas são suficientes para mostrar que
estava em desenvolvimento uma doutrina da vida após a vida e da imortalidade da
alma. Eclesiastes foi redigido num período em que a teologia hebraica antiga
não é muito profunda como metafísica antropológica e nunca tinha feito uma
afirmação realmente clara no tangente à distinção de estados da alma após a
morte.
Com estas
coisas em mente estamos firmemente apoiados para iniciar a interpretação do
verso em questão. O autor não se propôs a discorrer sobre a metafísica da alma
ou aos estados do ser após a morte, mas apenas fez referência à crença de que
no Sheol todos são igualados e não
podem mais realizar o que se pretendeu empreender nesta vida. Isto me leva a
crer que Eugene Peterson, gozando do dom que Deus lhe deu e de uma perspicácia
extraordinária, acertou em cheio quando da confecção da sua Bíblia A Mensagem,
uma tradução livre da Escritura de sua autoria. Ele colocou Ec 9.10 da seguinte
maneira: “Agarre cada oportunidade com
unhas e dentes e faça o melhor que puder. E com prazer! É sua única chance,
pois, junto com os mortos, para onde você vai com certeza, não há nada a fazer
nem haverá o que pensar”. Creio que foi exatamente isso que o autor
original quis expressar, com o entendimento de que dispunha na sua época.
Qual o
princípio eterno no texto em questão? O princípio eterno que percebemos nas
entrelinhas do texto é que após a morte não há a possibilidade de mudança em
nosso estado espiritual eterno, ou seja, a morte coloca um fim, não na
existência da alma ou da consciência humana, mas o coloca na oportunidade de
alterar nosso estado espiritual que levaremos para a eternidade. Este princípio
é reafirmado no Novo Testamento de maneira extremamente clara no texto em que
Jesus relata sobre Lázaro e o rico (Lc 16.19ss, mormente o verso 26). Em Mt
22.32 Jesus deixou claro que Deus é Deus de vivos, e não de mortos. Na Sua
crucificação, o Mestre também disse ao ex-ladrão crucificado ao Seu lado: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”
(Lc 23.43), e é óbvio que Ele não esperava isso fisicamente. A existência da
alma após a morte fica subentendida claramente, também, na declaração de Hb 9.27.
O apóstolo Paulo também diz que preferiria morrer e estar com Cristo (Fp 1.23),
pois isto é incomparavelmente melhor. Finalmente, o livro de Apocalipse
registra que aqueles que morreram por causa da Palavra de Deus e por causa do
testemunho de Cristo clamam debaixo do altar, na presença de Deus, dizendo: “Até quando, ó Soberano Senhor, santo e
verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a
terra?”. As evidências, no Novo Testamento, sobre a imortalidade da alma e
da consciência humana após a morte são muitas. Basta-nos estes exemplos.
Conclusão
O
livro de Eclesiastes é um livro canônico, realmente inspirado por Deus, que
revela princípios eternos imutáveis da parte do Criador. Descrer disso por
causa das suas peculiaridades e dificuldades de interpretação é um erro que
deve ser evitado a todo custo. Agostinho certa vez escrever: “Se você crê somente naquilo que gosta no
evangelho e rejeita o que não gosta, não é no evangelho que você crê, mas, sim,
em si mesmo”. Ele tinha razão. Cremos que a Bíblia, toda ela, em seus 66
livros, é a Palavra de Deus inspirada. Cremos no que convencionou-se chamar na
teologia de Teoria da Inspiração
Plenária e Verbal das Escrituras. Isto significa que cremos que a
Bíblia é plenamente inspirada por
Deus e que até a escolha dos termos, nos originais, foi supervisionada pelo
Espírito Santo de Deus. Rejeitamos a chamada Teoria da Inspiração Parcial da Bíblia, que afirma que a
Bíblia não é, mas apenas contém a Palavra de Deus. Se essa
teoria fosse verdadeira, estaríamos todos fadados ao caos e desvario
espiritual, pois quem há que seja considerado digno de dizer o que é e o que
não é inspirado na Bíblia, quais partes dela devem ser formadoras de doutrina e
quais devem ser desprezadas para essa finalidade? Obviamente, qualquer um
poderia julgar-se digno da “nobre e sublime” empreitada e, quando as opiniões
fossem divergentes, como saber quem tem a razão? Crendo que a Bíblia é
plenamente inspirada, as divergências são reduzidas às questões de
interpretação que podem ser, quase sempre, dissolvidas pela análise exegética e
hermenêutica séria e competente.
Que
Deus tenha piedade de nós, e que nos ajude a ler, estudar, interpretar, meditar
e ruminar Sua santa e infalível Palavra!
[1] A Septuaginta foi a tradução
do Antigo Testamento hebraico para a língua grega realizada por 72 sacerdotes
judeus a pedido do faraó Ptolomeu II, por volta do séc. II a.C.
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