Bíblias para crianças e adolescentes


segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Eclesiastes: Crer ou Não Crer???

             O livro de Eclesiastes tem provocado estranheza em seus leitores desde os tempos antigos, quando foi redigido pelas mãos do Pregador. Há um tom neste livro que soa um tanto “desarmônico” do restante das Escrituras, mormente de seus vizinhos, os livros de Provérbios e Cantares de Salomão. Enquanto Provérbios exalta a sabedoria e o conhecimento (Pv 3.13) Eclesiastes diz o seguinte: “Porque na muita sabedoria há muito enfado; e quem aumenta ciência aumenta tristeza” (Ec 1.18). Numa leitura um tanto simplória e desprendida do restante da Bíblia é fácil pensar que Eclesiastes foi escrito como um tipo de refutação sarcástica de Provérbios.

            Não bastasse, ao longo da história da Bíblia Eclesiastes tem embasbacado os leitores da Bíblia deixando-os encucados com o tom ácido e pessimista do autor que parece estar deprimido e com a tentativa frustrante de conciliar o tom do livro com aquilo que, subjetiva e quase sempre inconscientemente, a cultura ocidental resolveu eleger como “personalidade de Deus”. Como pode um Deus tão bom, amoroso e otimista admitir um livro tão cético e fatalista no miolo da Sua Palavra??? Ah! Este livro deve estar sobrando ali... Algum chato, desiludido da vida e atrevido deve ter incluído este livro nos livros sagrados para zombar, ou talvez ironizar, a esperança daqueles que se esforçam para crer que a vida pode ser melhor neste mundo.

            Quando isto chega ao pensamento tentamos buscar sentido pensando: a Bíblia não deveria mostrar mais coerência? Não deveria haver algum tipo de tom que fizesse a amarração entre todos os livros da Bíblia, de forma que eles se encaixassem com mais facilidade e não nos provocasse tanto???

            A verdade é que o livro de Eclesiastes é, junto com Cantares de Salomão, um dos livros mais mal compreendidos da Bíblia (e perceba a ironia aqui, Eclesiastes é a amargura; Cantares a doçura). Um é ignorado muitas vezes por parecer não se harmonizar com a doçura de Deus; o outro é ignorado por parecer não se harmonizar com a espiritualidade sisuda de Deus.

Devemos, todavia, nos atentar para alguns fatores que nos ajudarão a entender o por quê desta incompreensão que provoca o desgosto dos leitores por Eclesiastes.

 

1)      Eclesiastes é um livro poético

Literariamente Eclesiastes é um drama poético. É por isso que as nossas Bíblias o colocam junto com os outros livros poéticos, como Jó (literariamente uma tragédia); Salmos (literariamente poemas e cânticos); Provérbios (literariamente e literalmente um compêndio de provérbios e axiomas de sabedoria) e Cantares de Salomão (literariamente um poema romântico).

Estes livros, por causa do seu estilo literário, não devem ser lidos e interpretados do mesmo modo que os demais textos da Escritura. Dificilmente conseguiríamos chegar ao verdadeiro sentido de um texto poético, pretendido pelo autor, aplicando sobre ele as mesmas formas de interpretação que usaríamos num livro profético, como Jeremias, ou num livro de narrativa histórica, como Juízes, ou ainda numa biografia narrativa, como Lucas.

            Uma das mais marcantes peculiaridades dos livros poéticos é que enquanto os demais livros da Bíblia são claramente reconhecidos como Deus apresentando-se ao homem, os poéticos são notadamente o homem escancarando o seu coração e mente diante de Deus. É provável que esta seja uma das maiores razões pelas quais o livro de Salmos seja o preferido de muitos, por causa da identificação que o leitor encontra com o autor quando percebe que este exprime exatamente os mesmos sentimentos, crises, angústias e temores que ele na sua vida comum dia após dia. O autor mostra-se desnudo nos poéticos, não há firulas ou engodos. Se há um lugar da Bíblia em que qualquer ser humano poderia apontar o dedo e dizer: este sou eu, este lugar é nos livros poéticos. Nos poéticos vemos homens de Deus com medo, com uma fé trêmula, perplexos diante das incoerências que a vida num mundo caído apresenta em cada esquina. Num capítulo os vemos cheios de esperança e certeza, no próximo suplicando o socorro de Deus diante da sua fraqueza e inconstância. Simplesmente não dá para interpretar este tipo de texto como se interpreta a exposição de um tratado teológico sobre a doutrina do pecado como os primeiros capítulos da epístola de Paulo aos Romanos.

            Ao ler os poéticos, temos de ter em mente que estamos lendo um livro, inspirado por Deus, mas que reflete o coração do homem diante das circunstâncias da vida. Por isso, um conhecimento razoável das técnicas de hermenêutica é uma ferramenta formidável para a interpretação dos textos canônicos.

Como vimos os autores dos livros poéticos não tinham a intenção de escrever teologia ou de registrar narrativas históricas, mas a de virar do avesso o coração humano. Eles pretendiam fazer de seus escritos um espelho pelo qual os homens se reconhecessem e pudessem então chegar às mesmas conclusões.

 

2)      A revelação de Deus no Antigo Testamento foi Progressiva

Outra coisa que quando desconsiderada produz muita confusão nos leitores dos livros poéticos (e do Antigo Testamento em geral) é a revelação progressiva de Deus. Isto significa que, após o pecado e o afastamento entre o homem e Deus, o relacionamento quebrado precisava ser restaurado por meio de Cristo. Todavia, Deus resolveu ir se revelando a este homem pecador de forma paulatina para que sua mente maculada pelo pecado pudesse compreende-Lo com propriedade. Desse modo, Deus veio revelando a Si mesmo e Suas verdades ao homem através dos Seus servos ao longo da história do povo que Ele elegeu para esta honrosa tarefa, Israel. Esta revelação alcançaria seu ápice na encarnação do próprio Filho de Deus, Cristo, e seria registrada em Escritura pelos Seus servos, os apóstolos e discípulos no Novo Testamento. Até que Cristo viesse, na plenitude dos tempos (Gl 4.4), Deus preparou a nação de Israel e, por extensão, a humanidade, com o Antigo Testamento, que é a sombra das coisas que viriam com Cristo (Cl 2.17; Hb 10.1).

Todo o Antigo Testamento, então, é Palavra de Deus e útil para nos ensinar com a experiência nele registrada e para possibilitar a interpretação correta do Novo Testamento que é a coroação e conclusão de toda a preparação feita pelo Antigo Testamento. Todavia, enquanto os livros do Antigo Testamento vinham sendo escritos, o entendimento dos autores a respeito dos assuntos espirituais ainda não era completo, pois ainda não havia sido revelada toda a verdade de Deus em Cristo no Novo Testamento. Assim, precisamos compreender que Deus comunicou progressivamente, no curso dos séculos, as verdades necessárias à salvação e à compreensão dos assuntos espirituais até que o Novo Testamento estivesse completamente registrado.

 

3)      Princípios eternos, forma estética e conceitos incompletos

Entendemos, então, que os princípios eternos de Deus revelados no Antigo Testamento devem ser aceitos, cridos e vividos pelos crentes da nova aliança feita em Cristo. O erro, entretanto, seria confundir um princípio eterno de Deus revelado no Antigo Testamento com outras duas coisas: a formatação prática (forma estética) com que o princípio foi revelado e/ou expressões da compreensão limitada de uma doutrina ainda não revelada em sua plenitude. E é aqui que o livro de Eclesiastes sofre tanto!

Princípio eterno é a verdade que o texto ensina e que impera livre das limitações de tempo e espaço, ou seja, que vale para qualquer pessoa, em qualquer lugar, em qualquer tempo, em qualquer cultura. Os textos do Antigo Testamento obviamente carregam princípios eternos de Deus, daí sua importância.

A forma estética é a maneira, dentro do tempo/espaço/cultura, onde os princípios eternos de Deus foram aplicados. Um exemplo de fácil compreensão destas duas coisas é o sacrifício de animais instituído na lei do Antigo Testamento. O princípio eterno é que não há remissão de pecado sem sangue (Hb 9.22, conferir IPe 1.19). A forma de aplicar este princípio, na antiga aliança, usando um animal como substituo simbólico do pecador, foi abolida quando Cristo morreu na cruz. O princípio permanece: sem sangue derramado não pode haver remissão de pecado, portanto, a forma mudou, pois Cristo é o cordeiro perfeito oferecido uma vez por todas (Hb 7.27), mas o princípio sempre será vigente. Se confundirmos as duas coisas, teremos de sacrificar animais ainda hoje.

            Expressões da compreensão limitada de uma doutrina no Antigo Testamento também podem ser vistos em razão da revelação progressiva de Deus. Elas não ferem ou maculam o princípio eterno expresso nas passagens, mas podem dificultar o trabalho de interpretação se o leitor não dispensar um cuidado razoável no seu labor interpretativo.

 

4)      A importância de conhecer o propósito do autor ao escrever o livro

O propósito de Eclesiastes é questionar “que proveito tem o homem de todo o seu trabalho com que se afadiga debaixo do sol?” (1.3). Ele questiona as respostas comumente dadas à indagação, indicando suas experiências em tais aproveitamentos da vida terrena.

            O objetivo do escritor foi demonstrar, científica e filosoficamente, a futilidade da vida sem Deus e mostrar a satisfação e a alegria de viver na percepção da soberania divina. O livro é uma exposição dramática das arrogantes reivindicações do naturalismo e do hedonismo.

            O tema geral de Eclesiastes pode ser descrito como a futilidade de procurar significado da vida sem Deus, uma perspectiva negativista, tendo a felicidade da vida com Deus como tema corolário numa perspectiva positivista. Enfim, o tema geral é a verdade de que a eterna busca do homem pela tão almejada felicidade e o sentido da vida não pode ser satisfeita sem que se tema a Deus e guarde os seus mandamentos, pois a iniciativa de viver a vida na terra alheia aos conselhos do Senhor, por qualquer meio ou entendimento possível, termina em frustração e desespero. Se o autor revela o problema que procura resolver ao longo do livro logo na abertura (1.3), ele não deixa de registrar o resultado da sua pesquisa no fechamento do trabalho (12.13-14).

 

            Entendendo o verso Ec 9.10

            O verso na ARA está traduzido: “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque no além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma”. A ARC traduz: “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra, nem indústria, nem ciência, nem sabedoria alguma”. Ainda, a NTLH traz: “Tudo o que você tiver de fazer faça o melhor que puder, pois no mundo dos mortos não se faz nada, e ali não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E é para lá que você vai” (Grifos meus).

            Os termos grifados nas versões acima referem-se ao termo hebraico usado pelo autor de Eclesiastes, Sheol, termo que encontrou, na tradução da Septuaginta[1], o conceito correlato na língua grega com a palavra hades.

            Dizer Sheol não é pronunciar uma única ideia, mas sim colocar um rótulo em uma doutrina progressiva que avançou de um estágio a outro. Originalmente significava apenas “túmulo” e não continha nenhuma alusão ao pensamento de pós-vida de qualquer tipo, boa ou ruim. Nos Salmos e nos profetas a esperança da imortalidade começa a entrar no pensamento hebraico. O Novo Testamento adicionou dimensões significativamente maiores à essa doutrina.

            Da ideia primitiva de “túmulo” a doutrina se desenvolveu até ao ponto da concepção de as almas seguirem para o Sheol e ali permanecerem, mas ainda sem distinção entre bons e maus como, por exemplo, Lc 16.19ss ensinaria séculos adiante; cf. Jó 10.21-22; 26.5; Sl 16.10; 88.10; 139.8. Não são referências abundantes, mas são suficientes para mostrar que estava em desenvolvimento uma doutrina da vida após a vida e da imortalidade da alma. Eclesiastes foi redigido num período em que a teologia hebraica antiga não é muito profunda como metafísica antropológica e nunca tinha feito uma afirmação realmente clara no tangente à distinção de estados da alma após a morte.

Com estas coisas em mente estamos firmemente apoiados para iniciar a interpretação do verso em questão. O autor não se propôs a discorrer sobre a metafísica da alma ou aos estados do ser após a morte, mas apenas fez referência à crença de que no Sheol todos são igualados e não podem mais realizar o que se pretendeu empreender nesta vida. Isto me leva a crer que Eugene Peterson, gozando do dom que Deus lhe deu e de uma perspicácia extraordinária, acertou em cheio quando da confecção da sua Bíblia A Mensagem, uma tradução livre da Escritura de sua autoria. Ele colocou Ec 9.10 da seguinte maneira: “Agarre cada oportunidade com unhas e dentes e faça o melhor que puder. E com prazer! É sua única chance, pois, junto com os mortos, para onde você vai com certeza, não há nada a fazer nem haverá o que pensar”. Creio que foi exatamente isso que o autor original quis expressar, com o entendimento de que dispunha na sua época.

Qual o princípio eterno no texto em questão? O princípio eterno que percebemos nas entrelinhas do texto é que após a morte não há a possibilidade de mudança em nosso estado espiritual eterno, ou seja, a morte coloca um fim, não na existência da alma ou da consciência humana, mas o coloca na oportunidade de alterar nosso estado espiritual que levaremos para a eternidade. Este princípio é reafirmado no Novo Testamento de maneira extremamente clara no texto em que Jesus relata sobre Lázaro e o rico (Lc 16.19ss, mormente o verso 26). Em Mt 22.32 Jesus deixou claro que Deus é Deus de vivos, e não de mortos. Na Sua crucificação, o Mestre também disse ao ex-ladrão crucificado ao Seu lado: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43), e é óbvio que Ele não esperava isso fisicamente. A existência da alma após a morte fica subentendida claramente, também, na declaração de Hb 9.27. O apóstolo Paulo também diz que preferiria morrer e estar com Cristo (Fp 1.23), pois isto é incomparavelmente melhor. Finalmente, o livro de Apocalipse registra que aqueles que morreram por causa da Palavra de Deus e por causa do testemunho de Cristo clamam debaixo do altar, na presença de Deus, dizendo: “Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?”. As evidências, no Novo Testamento, sobre a imortalidade da alma e da consciência humana após a morte são muitas. Basta-nos estes exemplos.

 

            Conclusão

            O livro de Eclesiastes é um livro canônico, realmente inspirado por Deus, que revela princípios eternos imutáveis da parte do Criador. Descrer disso por causa das suas peculiaridades e dificuldades de interpretação é um erro que deve ser evitado a todo custo. Agostinho certa vez escrever: “Se você crê somente naquilo que gosta no evangelho e rejeita o que não gosta, não é no evangelho que você crê, mas, sim, em si mesmo”. Ele tinha razão. Cremos que a Bíblia, toda ela, em seus 66 livros, é a Palavra de Deus inspirada. Cremos no que convencionou-se chamar na teologia de Teoria da Inspiração Plenária e Verbal das Escrituras. Isto significa que cremos que a Bíblia é plenamente inspirada por Deus e que até a escolha dos termos, nos originais, foi supervisionada pelo Espírito Santo de Deus. Rejeitamos a chamada Teoria da Inspiração Parcial da Bíblia, que afirma que a Bíblia não é, mas apenas contém a Palavra de Deus. Se essa teoria fosse verdadeira, estaríamos todos fadados ao caos e desvario espiritual, pois quem há que seja considerado digno de dizer o que é e o que não é inspirado na Bíblia, quais partes dela devem ser formadoras de doutrina e quais devem ser desprezadas para essa finalidade? Obviamente, qualquer um poderia julgar-se digno da “nobre e sublime” empreitada e, quando as opiniões fossem divergentes, como saber quem tem a razão? Crendo que a Bíblia é plenamente inspirada, as divergências são reduzidas às questões de interpretação que podem ser, quase sempre, dissolvidas pela análise exegética e hermenêutica séria e competente.

            Que Deus tenha piedade de nós, e que nos ajude a ler, estudar, interpretar, meditar e ruminar Sua santa e infalível Palavra!



[1] A Septuaginta foi a tradução do Antigo Testamento hebraico para a língua grega realizada por 72 sacerdotes judeus a pedido do faraó Ptolomeu II, por volta do séc. II a.C.

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